Vía Público.
Por Lucinda Canelas
Fechar Pancho Guedes numa só categoria da história da arquitectura é “negar” Pancho Guedes. O arquitecto que se dizia também e sempre artista plástico, morreu este sábado, aos 90 anos.
Gostava de dizer que a arquitectura não tinha de ser “chata” e orgulhava-se de desenhar edifícios que criavam grande perturbação nas cidades onde eram construídos. Pancho Guedes, arquitecto ecléctico e artista livre, morreu este sábado na fazenda onde vivia, na África do Sul, junto da sua filha mais nova, Kitty. Tinha 90 anos e, segundo a família, não lhe eram conhecidas complicações de saúde.
“Era uma pessoa extraordinária, cuja arquitectura não tem igual em África”, disse ao PÚBLICO Jorge Figueira, arquitecto, crítico e professor que conhece bem o homem e a obra, e que com ele conversou longamente para o livro Reescrever o Pós-moderno, onde entrevista também outros arquitectos que marcaram o Portugal das décadas de 1970/80. “Pancho Guedes sempre foi, paradoxalmente, muito arquitecto, mas a arte moderna, e o surrealismo em particular, eram a sua maneira de ver o mundo. A arquitectura era a ferramenta, mas era a arte o horizonte.”
Amâncio d’Alpoim Miranda Guedes, mais conhecido como Pancho Guedes, nasceu em Lisboa em Maio de 1925, mas mudou-se ainda criança para África, onde aliás tem grande parte da sua obra construída. O pai, médico, levou-o primeiro para São Tomé, mas foi Moçambique e, depois, a África do Sul que se revelaram determinantes no seu percurso.
Definir a sua arquitectura é coisa que exige muitas referências e adjectivos, explica Jorge Figueira, crítico do PÚBLICO, isto porque Pancho Guedes não tem uma forma de fazer única, achando que podia mudar de estilo como mudava de roupa, sendo muitos personagens – muitos arquitectos – ao mesmo tempo. "Não há nada de vulgar no Pancho Guedes. Tudo nele é desconcertante e feito para desconcertar. A sua arquitectura tem muitas lá dentro, muitos estilos, muitas linguagens. É claro que é moderna, mas essa é apenas uma delas. Confiná-la a uma categoria é demasiado redutor e esquemático. É renunciar ao que ela foi. É negar o próprio arquitecto."
Não é, por isso, de estranhar, que Pancho Guedes dissesse ter 25 estilos e que, para falar de determinado edifício, começasse muitas vezes pelo desenho ou pela pintura, contando sempre histórias como quem quer cativar a atenção de uma criança. “Tudo depende do que se sonha”, dizia numa visita à primeira retrospectiva que teve em Portugal, quando fizera já 84 anos (Museu Berardo, Lisboa, 2009).
Absolutamente experimental
Nessa exposição, comissariada por um dos seus quatro filhos, o arquitecto Pedro Guedes, mostraram-se muitos dos projectos mais icónicos deste arquitecto que sempre quis ser pintor e que era também um grande coleccionador de arte africana.
Entre eles estavam, por exemplo, o edifício que ficou conhecido como O Leão que Ri, construído em 1958 na então Lourenço Marques, actual Maputo. É nesta cidade, aliás, que Pancho Guedes deixa grande parte da sua obra. “Ele é um dos arquitectos da Lourenço Marques moderna”, diz Jorge Figueira, lembrando que para ela projectou blocos de apartamentos, igrejas, conventos, escolas, estações de serviço.
Outro dos edifícios a destacar no portfólio deste arquitecto que também tem obra construída na África do Sul e no Zimbabwe, é a Igreja da Sagrada Família (1964), na Machava, área residencial nos arredores de Maputo.
Por vezes, admitiu na mesma visita à exposição do Museu Berardo, as suas propostas, que formam um corpo de trabalhos que via como uma “família” com “bicos e dentes, com vigas rasgando os espaços em redor, inventados como se algumas das partes estivessem prestes a separar-se e a estatelar-se no chão”, assustavam os clientes. O que parecia diverti-lo. “Tinha um sentido de humor incrível e trabalhava sem rodeios, sem restrições.” O seu espírito, como a sua arquitectura, era aventureiro, diz Figueira. “A arquitectura que faz em Lourenço Marques entre os anos 1950 e 70 é absolutamente experimental, é completamente livre.”
Uma liberdade que condizia com uma certa maneira “anarca” de ser e que encontrava no surrealismo, certamente uma das suas principais influências – “era um apaixonado por Man Ray e Dalí” -, um território de continuidade. “Nele a arquitectura e as artes confundiam-se, misturavam-se para criar coisas novas. Ele não fazia distinções entre uma e as outras”, garante o crítico de arquitectura, descrevendo-o como um não-alinhado, que Portugal só veio a redescobrir na década de 80 e que só resgatou verdadeiramente nos últimos dez anos.
Pancho Guedes, defende, foi pouco amado no país em que nasceu porque “não era um arquitecto de esquerda quando se pediam arquitectos de esquerda”. Conservador, anarca, sempre se manteve muito crítico em relação ao processo de descolonização e nunca o escondeu. “É por causa disso que a sua obra em Moçambique não continua pós-revolução – o contexto em que ele trabalhava, as suas ligações, desaparecem.” É aí que se muda para a África do Sul com a mulher, Dori (Dorothy Ann Phillips), e os filhos.
Uma das particularidades deste “homem encantador”, acrescenta Jorge Figueira, era o facto de continuar a trabalhar no desenho e na maquete de determinado edifício mesmo depois de este estar já construído e em funcionamento. “Esta capacidade de voltar a olhar para o que fez e de mudar o que fez é uma das suas características mais importantes. Ele está sempre a querer fazer melhor.”
“Homem desmultiplicado e feliz”, assim o descreve o crítico que desde 2005 nunca perdeu o contacto com este arquitecto e pintor que vinha a Portugal com alguma regularidade, para se instalar na casa que mantinha na Eugaria, nos arredores de Sintra, Pancho Guedes deixa, sobretudo, uma obra “sem condicionantes”, modernista antes dos modernistas e muito mais do que isso.
Obituário: Pancho Guedes, um arquitecto heterodoxo e desconcertante
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