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Por Fernando Serapião
Existe no Brasil um edifício desenhado por Auguste Perret. Mas não adianta correr para os almanaques das academias tupiniquins, consultar os livros de história da arquitetura no Brasil ou buscar no Google, pois essa informação não se encontra em lugar nenhum. É só ir até a rua Alagoas, 903, e olhar o prédio da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. Ei-lo.
O Perret brasileiro está lá há mais de 30 anos, mas ninguém percebeu ou registrou (ou quis registrar). Por que esse fato de enorme relevância cultural foi completamente negligenciado pelos historiadores brasileiros de arquitetura, pelos órgãos de preservação, pelo establishment cultural paulistano e até mesmo pela própria instituição?
Em 2004, comemoram-se 50 anos da morte de Auguste Perret (1874-1954), um dos maiores arquitetos da primeira metade do século 20. Com isso, aumentou o interesse acerca de seu trabalho: exposições, livros com as obras completas, publicações com seus textos etc. Filho de franceses, Perret nasceu na Bélgica, no curto período em que a família lá viveu, exilada por problemas políticos: seu pai - que trabalhava na construção civil, como assentador de pedras - participou da Comuna de Paris (1870). Quando Auguste tinha sete anos de idade, sua família voltou à capital francesa, onde ele viveu o resto da vida. Brilhante aluno da Escola de Belas-Artes de Paris, formou-se em 1898 e logo começou a construir. A formatação de seu pensamento é creditada à leitura atenta da obra de Viollet-le-Duc e Auguste Choisy, com quem aprendeu que a arquitetura deve ser produzida como disciplina lógica, construtiva e de valores morais.
A importância de Auguste Perret na história da arquitetura é unanimidade entre os historiadores, principalmente aqueles comprometidos com o movimento moderno - como Henry-Russell Hitchcock, Sigfried Giedion, Reyner Banham e Nikolaus Pevsner. Todos atribuem a ele o pioneirismo na utilização do concreto armado em obras de arquitetura. De fato, o esqueleto estrutural em edificações civis foi cristalizado pela primeira vez no prédio de apartamentos na rua Franklin, em Paris, criado em 1903, quando Perret tinha menos de 30 anos. Pouco depois, em 1905, ele fundou com seus dois irmãos, Gustave (1876-1952) e Claude (1880-1962), a empresa Perret Frères - Irmãos Perret -, que, além de projetar, construía. Entre as principais obras da equipe, estão a garagem na rua Ponthieu (1906) e o teatro na Champs-Elysées (1910).
Além de ser precursor do concreto armado, outro fato bastante lembrado pelos livros de história da arquitetura é a passagem de Le Corbusier pelo escritório dele, entre 1908 e 1909, o que, supostamente, teria dado ao arquiteto franco-suíço embasamento na exploração do esqueleto estrutural. Ou seja, Perret seria o mentor técnico-construtivo de Corbusier.
No entanto, ao contrário do franco-suíço, o franco-belga criou uma arquitetura a partir da engenharia, desprezou as características plásticas do concreto e se expressou através da modernização literal do vocabulário clássico. Esse último aspecto foi imperdoável para os historiadores, que, via de regra, ignoram o desdobramento posterior de seu trabalho. Quando o fazem, afirmam que foi um equívoco. Kenneth Frampton, por exemplo, diz que essa opção “mais tarde comprometeria gravemente o desenvolvimento de sua obra”. Os projetos pioneiros de Perret serviram (e ainda servem), nos livros de história, para marcar uma etapa, consagrar um degrau histórico: é um fato que caracteriza um desenvolvimento evolutivo. E, por não ser um vanguardista, não propor inovação nem experimentação, ele não se enquadra nesse darwinismo espacial. Esse descompasso técnico-histórico foi chamado por Corbusier de “paradoxo de Perret” - que consiste em estar na dianteira técnica, mas adotar o vocabulário clássico como expressão.
Isso não exclui o fato de Perret ser um projetista sofisticadíssimo, que tinha como principais interlocutores, por exemplo, Le Corbusier e o poeta Paul Valéry. Sua obra teórica é muito enxuta, de “mentalidade aforística”, segundo Frampton, o que o caracteriza como um homem de síntese. As frases dele foram repetidas a torto e a direito. Uma delas - “A arquitetura é fazer cantar os pontos de apoio” - chegou a ser atribuída a Vilanova Artigas, que, em 1985, recebeu da UIA o Prêmio Auguste Perret. Mas existem inúmeras outras, algumas ótimas provocações: “Uns tornam-se engenheiros, outros nascem arquitetos”, por exempo. Além disso, ele fazia parte da intelectualidade parisiense da época, com Duchamp-Villon, Picasso, Braque (para quem desenhou uma casa-ateliê, em 1927-30) e Ozenfant (a quem apresentou a Le Corbusier).
A crítica à opção classicista de Perret não impediu que ele tivesse grande reconhecimento em vida e fosse considerado um dos maiores arquitetos franceses de seu tempo. Diante dos encargos públicos que recebeu - entre eles o Ministério da Marinha (1928-56), o Mobilier Nacional (1934-36), o Museu de Obras Públicas (1936-48) e a reconstrução de Le Havre (1945-55) -, pode-se supor que ele representasse o Estado francês, coisa que, diga-se de passagem, Corbusier nunca conseguiu. É aos projetos da última fase - quase todos construídos na França, carregados do estilo nacional clássico e concebidos à luz de acentuado nacionalismo - que os críticos torcem o nariz.
O projeto
É nesse contexto que se enquadra o Museu de Belas-Artes de São Paulo, mais conhecido, por estas bandas, como o prédio-símbolo da Faap. Localizado na divisa entre os bairros do Pacaembu e Higienópolis, o edifício foi desenhado entre 1947 e 1949, seis anos antes da morte de Perret. A construção, que se estendeu por mais de 20 anos, é, provavelmente, a última de Perret a ser concluída.
Trata-se de um bloco pavilhonar de dois pavimentos, assentado sobre um piso-embasamento que o acomoda na topografia. A implantação, em sentido norte-sul, conforma um praça frontal triangular. Como a maior parte dos projetos de Perret, o prédio da Faap possui organização simétrica. Se no frontispício o destaque é o pórtico de entrada abrigado em antecorpo, na fachada posterior o trecho equivalente é marcado por um recuo na massa construída, de forma a salientar o ritmo da colunata. Esta, por sua vez, é composta pela clássica “coluna Perret”, que aparece, entre outros projetos, no Museu de Obras Públicas e na prefeitura de Le Havre.
Essas colunas - que caracterizam a fase final do projetista - têm capitéis, são mais grossas em cima do que embaixo e revelam perfil facetado por pequenas fôrmas do concreto deixado aparente (aqui cabe um parêntese: Perret foi precursor também em tirar partido das características do concreto aparente). Na Faap, atualmente as colunas estão revestidas. Quanto à ornamentação geral do prédio, um desenho do arquivo da Faap - de autoria desconhecida - mostra mais elementos do que as pranchas encontradas no arquivo de Perret. A arquitrave, por exemplo, é muito mais trabalhada. (Atenção, mestrandos e doutorandos: mistérios a desvendar.)
Os intercolúnios da fachada são marcados por fechamento em ritmo de almofadas quadriculadas que expressam desejo de racionalização da alvenaria. É certo que a textura e os pormenores não possuem a mesma força dos edifícios parisienses de Perret, mesmo porque ele, um exímio construtor, não acompanhou a obra no Brasil. O hall de acesso possui diversos elementos caros à obra perretiana: a escadaria lembra a que ele desenhou para o teatro de Champs-Elysées, de 1910 e 1913, e os pequenos vitrais, voltados para o fundo, compõem um grande mosaico iluminando o espaço de forma curiosa. Em certa medida, o espaço evoca a luz colorida da Notre Dame du Raincy, de 1925, uma de suas obras-primas. Curioso notar que os vitrais são fragmentos de obras de artistas plásticos brasileiros escolhidos por Pietro Maria Bardi. Isso porque, em 1957, houve uma aproximação entre o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e a Faap, e chegou-se a um acordo pelo qual o prédio do Pacaembu abrigaria a pinacoteca do museu de Assis Chateaubriand. Logo rompido, o pacto fez com que a Faap herdasse os famosos cursos de arte do Masp, que, em seguida, construiu a sede da avenida Paulista.
Os espaços para exposições, no primeiro e no segundo pisos, são generosos e flexíveis. Prova disso é a diversidade de belas montagens lá abrigadas nos últimos anos (já que realizou exposições com os franceses Andrée Puttman e Jean Nouvel, quem sabe a Faap não se interessa em trazer para São Paulo a grande mostra sobre os Perret?). Enquanto as salas do térreo são iluminadas por janelas, o piso superior tem iluminação zenital. No embasamento está, entre outros espaços, o teatro, cuja execução inverteu a posição original. O palco, por sua vez, oculta uma testemunha das intenções de Perret: um pilar de concreto aparente e facetado que escapou da massa, provavelmente, por estar em local considerado pouco nobre.
O encargo
A encomenda do projeto é nebulosa. O prédio da fundação foi idealizado por Armando Álvares Penteado, filho da mais sofisticada elite paulistana da primeira metade do século 20. Seu pai, o conde Antônio Álvares Penteado, foi um cafeicultor que modernizou suas atividades, tornando-se um industrial de primeira hora - o que lhe rendeu uma das maiores fortunas do país. Os Penteados tinham estreitos laços com os Silva Prados e ambos tinham hábitos requintados e eram novidadeiros: gostavam de aviões, balões, automóveis etc. O lar do clã era a Vila Penteado, posteriormente doada para a implantação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e que hoje abriga a pós-graduação da FAU/USP.
O conde teve cinco filhos. Um deles, Armando, era um bonvivant, que seis meses por ano se instalava em seu apartamento em Paris, onde mantinha contato com artistas de vanguarda. Ele e sua mulher, a francesa Annie, fundaram uma escola de arte e um museu, que são a origem da Faap. Em 1947, ano do início do projeto de Perret, Armando morreu.
A confusão começa aí. A instituição considera Armando o autor do edifício. No livro sobre a história da Faap, editado pela DBA, o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão afirma: “Ele [Armando] chegou a fazer o projeto do prédio”. Brandão perpetua erros anteriores: a pesquisadora Maria Cecília Naclério Homem, ligada à família Silva Prado, afirma, em duas publicações, que Armando é o autor da edificação. “Para tanto, destinou parte de seu capital e fez, ele mesmo, o projeto do prédio (...)”, ela conta em Uma família paulistana, de 1976. Anos mais tarde, em 1980, em Higienópolis, grandeza e decadência de um bairro paulistano, ela relata: “ (...) a faculdade de artes plásticas Armando Álvares Penteado em prédio projetado por Armando Álvares Penteado, na rua Alagoas, 903”.
O mais provável é que Armando tenha conhecido e contratado Perret durante suas estadas em Paris. Apesar da origem humilde, o arquiteto era um dândi e tinha hábitos sofisticados. Esse perfil os aproxima: dois quase aristocratas que gostam de arte - um fazendo, outro consumindo. A história, tal como narrada por Karla Britton, em Auguste Perret, também é confusa. À afirmação de que uma das últimas obras do arquiteto é um museu de belas-artes construído em São Paulo ela emenda informações sobre palestras proferidas por Perret em Buenos Aires, em 1936, e sua eleição como membro correspondente da Academia Argentina de Belas-Artes. Em seguida, ela volta a falar sobre o museu: “O projeto do museu de belas-artes foi inicialmente dado a um arquiteto polonês, M. Dygat, que era entusiasta da obra de Perret e acabou por trabalhar em parceria com ele e Paul Tournon. Com a morte de Dygat, Perret assumiu a responsabilidade pelo projeto”.
Mas por que tal equívoco até hoje não foi esclarecido, nem pelos estudiosos nem pela Faap? Como fato histórico e cultural, o edifício passou despercebido, apesar de seu tamanho e localização. Mesmo porque manifestações exóticas nunca estiveram no centro das atenções dos historiadores da arquitetura, empenhados em apontar e consagrar a formação e o desenvolvimento da cultura brasileira. E, de fato, nesse sentido, o que tem a ver um prédio de Perret com a arquitetura paulista ou brasileira? Quando os autores locais citam a influência de Perret na arquitetura tupiniquim, não fazem conexões com o prédio em questão - mesmo porque, se a autoria não lhe é atribuída, não pode gerar influência de nenhuma ordem.
Por outro lado, quando ficou pronto, no início dos anos 1970, o prédio parecia fora de hora e contexto - um verdadeiro “elefante branco”, conforme comentário ouvido de um professor de uma faculdade de arquitetura - e os edifícios parisienses de Perret estavam muito distantes para serem comparados. Nesse caso, má-fé seria conhecer a autoria e não divulgá-la, para o bem ou para o mal. E, naquela época, isso até faria sentido: as opções estilísticas adotadas pelo francês possuem tal caráter clássico, que louvá-lo poderia ser um desserviço aos valores da cultura local. Ainda mais em um tempo de acirramento político, em que a lógica de Perret poderia ser confundida com a do italiano Marcello Piacentini e do alemão Albert Speer.
De parte da instituição, pode ter se perdido a memória. Com a morte de Armando, sua mulher Annie e a fundação tornaram-se herdeiros (eles não tiveram filhos). Pelo provável envolvimento dele com o projeto, atribuíram-lhe a autoria. Com a morte da esposa, amigos mantiveram-se à frente da entidade e perpetuou-se o erro.
É um Perret tardio, em uma cidade que não consegue reconhecê-lo. Contudo, ainda há tempo de olhá-lo com mais cuidado. Ele está lá, e certamente um museu desenhado por Perret é um acontecimento e tanto. Estando fora da França, ele é único. Esse fato cultural sobrepõe-se a qualquer mal-entendido. O prédio chega até nós como símbolo, uma testemunha: ele é o único grande edifício patrocinado pela vigorosa elite paulistana de outrora, amante da boa vida e das artes. E precisa ser reconhecido como tal, protegido pelos órgãos responsáveis e conservado em sua melhor forma. De dez anos para cá, o edifício passou por reformas internas que podem ter tido boas intenções, mas, de certa forma, descaracterizaram alguns pormenores e acabamentos. Não custa lembrar que, há pouco mais de dez anos, a instituição cogitou transformá-lo em shopping center, o que o levaria a ter o mesmo triste destino de outra construção paulista desenhada por um estrangeiro - a fábrica da Olivetti, em Guarulhos, de 1957, criada por Marco Zanuso. E, neste caso, a autoria do prédio era reconhecida por todos, proprietários e historiadores.
No Brasil de famosa arquitetura modernista, a história ganha outras tinturas. Não aceito na França, Le Corbusier fez do mundo seu universo de trabalho. Em terras tupiniquins, apesar de suas tentativas, não deixou nenhuma obra - só discípulos e a participação no projeto do Ministério da Educação e Saúde. Por ironia, Auguste Perret, arquiteto de grandes trabalhos na França, não conseguiu propagar sua onda classicista mundo afora (muito menos no Brasil). Mas, meio às escondidas, deixou aqui um rematado exemplo de seu “paradoxo”.
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 298 Dezembro de 2004
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